Além do mais, uma mesa de bar nunca deixou de ser um grande oráculo de mentes perdidas e corações desesperançosos.
No meio da tarde do Sábado que prometia ser de grande empenho pelo grande movimento no restaurante, Django começou a sentir dores inquietantes, que dificultava até mesmo sua capacidade de manter-se de pé; foi levado direto para o Hospital Pronto Socorro para uma bateria de exames, e como era de se esperar da saúde pública, mais de uma hora para ser atendido e mais três horas para receber o resultado dos exames que apenas poderia ser entregue no mesmo dia, o que obrigaria qualquer criatura que morasse longe do HPS, no caso Django por morar na zona sul, a "mofar" no banco de espera do hospital para não ter que voltar e nem ter jogado esse "tempo perdido" no lixo. Afinal, como não poderia deixar de ser inteligente a saúde pública, por que haveria consideração com enfermos para que se deixasse disponível os resultados para o dia seguinte?
Mesmo assim Django foi pra casa dispensado do serviço naquele dia. Claro que antes de fazer os exames suas dores já haviam cessado, mas isso o pessoal do trabalho não precisava saber.
Por muito tempo Django não sabia mais o que era sair em finais de semana e se divertir reencontrando amigos e tudo que a vida social permite, mas o mais importante, ao ser dispensado do serviço para voltar a sua casa e repousar, ele lembrou de um detalhe crucial...era Sábado.
Johnny ouviu seu celular tocar do bolso e atendeu:
- E aí, meu. Tá vivo, seu chorão? - Johnny deu gargalhadas.
- É um trouxa! - riu também, Django. - Mas tô melhor sim. Enfim, sejamos objetivos...se tu conseguir a alforria ainda hoje, me liga. - riu de novo.
- Pode crê! O movimento deu uma baixada, talvez seja possível, eu vou ter que abrir o restaurante amanhã, acho que vão me liberar mais cedo, ou melhor, menos tarde.
- Até mais!
- Falou.
Johnny desligou o celular e guardou no bolso.
Era 1h da manhã quando Johnny ligou para Django:
- Pode passar por aqui.
- Tá, mas me espera na rua de trás, seu imbecil, se não o gerente me vê.
- Claro, claro! - Johnny desligou o telefone.
Django avisou ao seu pai que pegaria o carro para ir buscar os exames. Buscou o Johnny no caminho e seguiram rumo ao centro. Estacionando de fato próximo ao Hospital, Django pediu pra Johnny aguardar e saiu. Dez minutos decorridos e Django voltava rindo olhando para o exame.
Johnny tragou seu cigarro e perguntou o motivo da risada.
- Não tenho nada, serviu só pra eu ganhar folga! - ambos riam. - Vamos à festa! - Django bateu a chave na ignição e o carro não dava o menor sinal de vida, foram uns dez minutos empurrando pra tentar pegar no tranco, abrindo a tampa do motor, fuçando no cabeamento, limpando velas, empurrando o carro de novo até que finalmente pegou.
Johnny ria.
- Vamos chegar na festa todos suados, que droga, e as minhas roupas estão no apartamento da minha irmã, eu teria que ir lá escolher uma roupa, voltar pro meu apartamento, tomar banho e depois irmos.
- Não! Vamos demorar muito, aí a festa já acabou. Vai com a roupa do corpo! - falou Django.
- Bem capaz! Vou vestido de garçom?
- Que garçom que nada! Só tá com sapato e calça social, todo mundo usa isso.
- Claro que sim, Django! Combinando com camiseta? – ironizou.
- Mas o que tem uma camiseta demais, até que não fica ruim com calça e sapato, e tudo em preto. Só por que está escrito na camiseta... - Django fixa os olhos na estampa pra ler o que estava escrito - deixa-me ver... "4º motoshow" - Django caiu em risos. – uma mistura de vergonha com vontade de rir do deboche era a tradução exata da expressão que se desenhava no rosto de Johnny.
- Olha aí! Já está me debochando, trouxa!
- Tô brincando! - Django tentava conter o riso ao acender o cigarro. - Vai assim mesmo, falando sério, se não perderemos tempo.
Johnny sob protesto concordou.
Havia poucas vagas na Av. Aureliano, mas, além disso, a dupla torcia por uma vaga que além de disponível, não houvesse como ninguém estacionar na frente ou atrás, até por que não dava pra confiar na ignição. Mas sem demoras, a vaga foi encontrada.
Entraram na fila da casa noturna e Django encontrou uma vizinha, mas infelizmente estava acompanhada, dentro desta condição não perdeu mais do que um minuto de cumprimento e papo vago, a noite era pra conquistas, e não pra troca de figurinhas com alguém que se poderia ver na rua diariamente.
A festa pegava fogo, muita gente animada, gente bonita e a sensação de estar de volta à vida social justamente num Sábado era inexplicável para ambos. Para Johnny era bom estar se divertindo e esquecendo os problemas e estresses da vida, sem contar o fato de não conhecer muita gente em Porto Alegre; para Django sair num Sábado era ótimo, principalmente com dinheiro, pois estava desempregado por muito tempo antes de ir trabalhar no restaurante, o que obviamente o limitava na escolha do lazer.
Era uma espécie de “Operação Cinderela", tentando se divertir o máximo naquela noite, às 5h da manhã Django teria de devolver o carro pra que se pai fosse trabalhar e creditar em futuros empréstimos do automóvel; e Johnny às 10h da manhã teria que abrir o restaurante conforme a escala.
Cerveja, mulheres atraentes, muitas risadas. Era disso que precisavam. Em seguida os dois encontraram Marquito, grande amigo de Django, que apresentou o amigo ao Johnny.
Enquanto tocava a música Saturday Night, um dance de autoria do “The Underdog Project”, os três dançavam e se divertiam quando uma bela morena jambo mirou Marquito nos olhos.
- Olha aquela morena! – Marquito cochichou para os amigos. – vou dar um tempo e vou lá falar com ela.
- Por que não vai agora, tá todinha por ti! – disse Django instigando o amigo.
- Quem sabe eu acho alguma outra melhor - ria – se não rolar nada vou nela.
Johnny apenas ria. Mal havia passado 15 minutos e Marquito tirou a garota para dançar quando um samba-rock começou a tocar na voz de Seu Jorge.
Naquele momento o trio "sofria uma baixa". Voltando à "formação original" do início da festa, Django e Johnny dançavam, riam, conversavam, bebiam (muito) e fumavam (mais ainda). Django encontrou uma amiga que trabalhava na danceteria, mas não pôde falar muito com ela, ao contrário do que gostaria.
- Oi, Lilica!
- Oi, Django! Resolveu aparecer?
- Digamos que sim! Fazia tempo que queria conhecer esta casa noturna e é claro... te ver. Mas vou te deixar trabalhar.
Pois é, tá muito corrido – Lilica riu. Abraçou e beijou Django no rosto. Em seguida seguiu servindo bebidas na copa em que estava.
Django suspirou ironicamente olhando para Johnny fazendo menção à beleza da amiga.
- Cara, é muito bom estar de volta na noite – Django tomou um gole de cerveja olhando uma loira passar, depois para Lilica, e então olhou novamente para Johnny, e sua expressão concordava com o que acabara de comentar.
- Nem me fala – disse Johnny olhando ao seu redor como se procurasse algo.
Ao passo que o estilo música rave dominava o som da festa, um grupo de garotas dançava muito animado. Eram três morenas claras. A mais alta interessou Django, e uma com um piercing na sobrancelha chamou a atenção de Marquito.
Era 4 horas da manhã, o carro de Django estava para transformar-se em “abóbora”, alguma “vítima” deveria ser encontrada pelos rapazes. Ambos estavam mirando as garotas. Mas parecia que nada “brilhava”. Em seguida Marquito retornou, e Django não perdeu a oportunidade do deboche:
- Casou na festa? Que guri! Se apaixonou! – ria Django.
- Vai te fudê, meu! – ria Marquito – disse que ia dar uma banda e larguei de mão, mas claro que peguei o telefone dela.
- Fez bem – observou Johnny sorrindo.
Enquanto todos conversavam, um cara esbarrou em Johnny, quase derrubando a cerveja sobre ele, ao se afastar do cara, Marquito viu ao fundo no segundo plano, a garota de piercing novamente, e por ela estar mais próxima neste momento, Marquito reconheceu...era sua amiga.
Marquito olhou, acenou e foi até ela. – Licença gurizada, já venho de volta.
- E aí, guria como está?
- Tô bem! Curtindo com as amigas aqui.
No mesmo instante Django encontrou uma brecha para a oportunidade, caminhou pra perto de Marquito e sua amiga e na maior cara-de-pau se enfiou na conversa:
- Bah, Marquito, não apresenta as amigas? – deu um sorriso, Marquito os apresentou e Django já indagou na sequência.
- Diga-me uma coisa. Aquela morena alta é tua amiga, né?
- Qual? - a amiga de Marquito olhou para a direção que Django se referia e confirmou com um sorriso entre as suas respostas.
- Pode me apresentar a ela?
- Claro!
Django pensava consigo mesmo “nunca foi tão fácil”.
- Vem comigo que eu te apresento agora. Marquito eu já volto – disse sua amiga.
Com a adrenalina subindo um pouco os cumprimentos foram feitos após as apresentações.
- Este é Django, amigo do meu amigo Marquito que encontrei aqui na festa. E esta é minha amiga Samantha. – três beijos para se cumprimentarem, olhares observadores e um início de conversa desconfiado mas interessado em todas as entrelinhas.
A amiga de Samantha deixou-os e voltou para conversar com Marquito. Johnny havia saído para buscar mais cerveja.
- Então. Mora onde? – Django estava meio apreensivo, se sentia “enferrujado”, pois há anos não sabia o que era ser solteiro.
- No bairro Tristeza.
- Desculpe, não ouvi direito. Onde você mora mesmo? – inclinou sua cabeça para mais próximo dos lábios de Samantha.
- Tristeza! – disse mais alto.
- Ah sim. Que legal. Perto do meu bairro, eu moro em Ipanema.
A conversa se desenrolava fácil, Samantha sorria, abraçava Django e este por inúmeras vezes arriscava um beijo roubado sempre mal sucedido. Ela sorria com a malícia de uma mulher difícil, mas que esperava pela persistência do pretendente, provando assim o real desejo de conquistá-la. Django conseguiu.
No intervalo de alguns beijos, Django dispersava e voltava à roda dos amigos para beber uma cerveja e conversar um pouco.
- Bah, Django! Tu é um baita “fura-olho”! Johnny ria.
- Eu, por quê? Vai dizer que tu tava de olho na Samantha?
- Pior que tava, haha. Mas não esquenta, tava mais pra ti do que pra mim.
Django riu. Marquito olhou o relógio, bebeu o restante da cerveja de seu copo e anunciou sua partida.
- Pois é, gurizada. Tenho que ir.
Já vai indo? Vai me deixar segurar vela sozinho pro Django, haha. – disse Johnny no bom humor.
Django riu. Cumprimentou Marquito depois de Johnny.
Em seguida Johnny disse que teria que ir também por ter que acordar cedo para abrir o restaurante no dia seguinte. Django foi até Samantha para se despedir.
- Me dá o teu telefone?
- Claro. – disse Samantha. Django pegou seu telefone e copiou o número na agenda do celular. – Mas tu vai me ligar mesmo?
- Claro, a gente combina algo na semana, ok? – disse Django dando um beijo na boca de Samantha e depois na mão. Ela também pegou a mão de Django e deu um beijo como uma brincadeira. E notou uma sujeira preta em baixo das unhas de Django.
- Que é isso?
- Isso o quê?
- Isso em baixo das suas unhas?
“Maldito carro” pensou Django. – Problemas no carro. – respondeu Django constrangido, e assim saiu com a vontade de enterrar a cabeça na terra feito uma avestruz.
Johnny e Django saíram da festa, riam muito do ocorrido com Django na despedida com Samantha. Já na calçada Johnny sugeriu uma espécie de saidera:
- Que tu acha da gente “fumar um”?
- Quê? – perguntou Django.
- “Fumar um”, “fazer a cabeça”, “fumar um Jack Johnson”. – Johnny dava risada.
- Tá te referindo a uma Cannabis? Seu drogado do inferno! – Django debochou.
- Sim. Isso seu imbecil!
- Pode ser. Só pra dar uma variada na vida certinha que ando vivendo.
No apartamento de Johnny a filosofia mundial voava junto com a fumaça pelas paredes e teto, foi quando Django percebeu o horário tardio e que deveria devolver o carro antes que seu pai se acordasse.
- Tenho que ir, Johnny.
- Dá um tempo, recém acendemos.
- Recém? Faz mais de 20 minutos, haha. – caminhava de forma tonta até a porta como se fosse um sapo bêbado.
No outro lado da avenida estava o carro. Foram mais alguns minutos de empurra até que o carro pegou no tranco.
- Tem condições de dirigir, meu?
- Não se preocupa Johnny, vou bem na manha.
- Se cuida Django!
- Falou, um abraço.
Parecia tudo bem. Ter voltado a sair, rever amigos, ter conhecido uma bela mulher na noite, apesar de alguns contratempos como o carro e a vergonha por causa da graxa nos dedos. Mas nada poderia estragar a noite que resgatou a espírito boêmio de Django que há alguns anos havia se apagado.
Na verdade, algo poderia.
O carro apagou na metade do caminho. Django sozinho, cansado, com sono, semi-bêbado e chapado, próximo de uma vila “boca-braba” em plena madrugada... não parecia nada positivo. Tentou empurrar por alguns longos minutos, mas não obtinha sucesso, principalmente por empurrar o carro com o freio de mão puxado. Depois de lembrar deste “pequeno detalhe”, conseguiu empurrar para uma rua aparentemente segura em frente a um posto de gasolina, estacionou o carro e trancou todas as portas.
Teve que pegar uma lotação e depois um ônibus pra voltar pra casa.
Diante de uma noite divertida, levar uma “mijada” do pai de manhã não seria a melhor forma de acabar a noite, e longe de um desfecho razoável. Mas nem sempre a vida reserva opções favoráveis.
“Da próxima vez eu vou de ônibus” pensou Django olhando o carro pela janela da lotação tentando tirar a graxa da unha com a chave do carro.